6 de mai. de 2009

Fotografia Falada: Alcyr Lacerda e meio século de fotografias

O AutoFoco inaugura sua sessão de entrevistas. Fotografia falada. Para começar - bem - trazemos uma conversa com Alcyr Lacerda, feita em 2007, quando ele tinha 80 anos. Por motivos absolutamente injustificáveis demoramos um monte para disponibilizar no blog. Agora, reparamos essa lacuna.


Alcyr Lacerda, breve Perfil: Nascido em São Lourenço da Mata, PE, 1927.

Ele é o decano da fotografia pernambucana. No ano em que completou 80 anos de vida, mais de 60 no percurso com a fotografia, Alcyr Lacerda conversou com o AutoFoco. Em frente as suas lentes, passou mais da metade do século XX. Autodidata. Começou com uma Rolleiflex. Emprestada. Em 1957 abre a ACÊ Filmes. No mesmo ano começa a trabalhar com fotografia científica na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco. Colabora como freelance para o Jornal do Comércio, Diário de Pernambuco, O Estado de S. Paulo e revistas como Fatos e Fotos, O Cruzeiro, Veja e Placar. Em 1963 começa a trabalhar como fotojornalista na sucursal da Manchete no Recife. Em 1963 e 1964 realizou reportagens fotográficas sobre a seca, o golpe militar e a prisão do governador Arraes.

Nos anos setenta a ACÊ filmes chega a contar com 25 fotógrafos em seu quadro de funcionários e documentaram parte da história da sociedade pernambucana. Na década de 80 presidiu por duas vezes a Associação dos Repórteres-Fotográficos e Cinematográficos de Pernambuco. É membro do Conselho de Ética do Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco. Em 2001 e 2002, com a exposição Tamandaré, Pescadores de Almas e de Peixes, mostra as fotografias dedicadas a esta praia ao longo de 50 anos.



Em 2004 foi organizada a exposição dedicada ao autor na Torre Malakoff onde foi inaugurada a sala Alcir Lacerda destinada às exposições fotográficas. Tem material depositado de modo permanente na coleção pirelli de fotografia.

"Seu Alcyr", como é chamado, é uma enciclopédia. Mas também acompanha a fotografia atual. Em 2007, ele deu o depoimento abaixo. É uma aula múltipla. De fotografia, de história, de dicas - preciosas - para quem está na profissão, de vida.

Entrevista concedida em 23 de novembro de 2007, no Centro de Artes da UFPE.

AutoFoco: Em mais de 50 anos de fotografia,com mais da metade do século xx fotografando,olhando para as suas fotografias e olhando para esse período, quais são as principais diferenças que o senhor sente, que o senhor percebe em relação à fotografia, o que ela era antes e o que é hoje?

Alcyr Lacerda – A diferença maior é que hoje você não usa um filme convencional numa máquina convencional. Muita gente sabe fotografar com a digital mas não sabe pegar em uma máquina convencional com filme. Muita gente não sabe o que é profundidade de foco, não sabe fazer o ângulo certo da fotografia. Por que você bate uma fotografia na digital e você diz “gostei não”, ai apaga, não é? E no negativo, você precisa ter mais atenção, por que, vamos dizer, se eu for fazer uma foto sua e você fechar os olhos, é tão rápido que não dá nem pra ver, mas com a prática, você sabe se alguém fechou os olhos. Com a digital, não: você apaga e faz outra foto.
Então, muita coisa que vocês, na digital, aprendem, e no meu caso já é mais difícil para mim, mas para você manipular um filme é muita mais difícil que usar a digital. Até criança faz fotografia com a digital. A gente saia para fazer um trabalho, enquanto não revelava os filmes, a ansiedade era muito grande. Então quando a gente ia fotografar, tinha toda calma, as vezes repetia aquela foto porque sentia que ela não tinha ficado boa, problemas de iluminação... Tinha vez que eu esperava mais de duas horas esperando que o sol baixasse por que eu queria pegar a sombra daquilo que eu estava fotografando no chão, entendeu?

AF – o senhor acha que com a fotografia de hoje, que com essas facilidades do digital, o fotografo aprende menos, que é pior para ele... Que avaliação o senhor faz disso?

Alcyr Lacerda – Eu não acho que seja ruim para o fotógrafo. Mas acho que banalizou a fotografia. Hoje todo mundo é fotografo. Se você tem uma sensibilidade boa de um ângulo, você vai dominar sua máquina, você vai fazer fotos espetaculares. Agora, também você não sabe a durabilidade hoje em dia dessas fotos coloridas. Se aparecer umas pintazinhas no cd... Você não vai deixar todas as suas imagens no computador, ninguém sabe a durabilidade de um cd, que é uma negocio muito novo, não é? Meu pensamento é mais isso... As vezes a gente vai para um casamento fotografar, a gente leva digital. Depois do casamento a gente descarrega no computador e grava as imagens brutas. E ninguém sabe se vai entrar um vírus no computador e acabar com o casamento da moça?

Cd quebra, cai no chão, arranha. Eu não gosto porque eu não sei até onde vai o arquivo, a duração deles. Tem negativo de 45 anos... O computador vai agüentar todas as imagens? São essas coisas? Eu guardo os negativos com maior carinho até hoje. Hoje eu ganho mais dinheiro nas fotos antigas de cinqüenta, sessenta e setenta de que eu indo fotografar agora. Por quê? Vou dar uma idéia a vocês. Há cinco anos, eu cobro trinta reais em uma foto 24x3ocm, um álbum com quarenta fotos custa 1.350,00 reais. Há cinco anos que é esse preço. E hoje você não pode deixar muito diferente disso não. Hoje já tem fotografo que entrega até o cd para você imprimir as fotos. Quer dizer, banalizou os negócios.

AF – Pelo que eu estou sentindo já nessa conversa que a gente esta tendo aqui, já dá pra perceber que na sua vida profissional você já fez social, fotojornalismo, fez documentação... Me diga agora: o que o senhor não fez na fotografia?

Alcyr Lacerda – em fotografia eu já fiz tudo (risos)!! Por exemplo, eu já passei na Amazônia vinte e cinco dias dentro da mata, e essa foi a pior reportagem que eu fiz - pior não, a mais difícil. Tinha que passar uma coisa no rosto para espantar um negocio lá que dava febre amarela...

AF – isso foi uma reportagem para a Revista Manchete, não foi?

Alcyr Lacerda – Sim. E eles encontraram lá pedras preciosas. Passei oito dias lá. tinha de tudo: criminoso, ladrão... Todo mundo fugia para lá. Uma outra reportagem foi também sobre pedra preciosa no Piauí, uma denuncia que fizeram: um americano tinha um campo de pouso de avião cercado por arame farpado... Fomos eu e Ivanildo Sampaio, foi uma das primeiras reportagens dele... A gente chamava ele de foca (risos). Então, nós fomos para uma casa de uma família bem pobrezinha de lá e vimos pedras preciosas, que eles vendiam aos americanos. Eu lembro que passei cinco dias na mata até chegar na cerca. A gente levou até alicate pra não levar choque! Em um dia eu peguei uma teleobjetiva, uma 500mm. Depois, ficamos esperando o avião pousar. Eu fiz as fotos do avião chegando, vi aqueles caras lá botando umas coisas dentro do avião... Nós fizemos essa reportagem e ela nunca saiu na manchete... Porque alguém deve ter... Vocês sabem, né?

AF - Como foi a cobertura da deposição do governador Miguel Arraes pelos militares?

Alcyr Lacerda – Complicado. Ele já tinha prisão decretada, mas estava dentro do palácio do governo. Durante o dia eu não saia da praça em frente ao palácio, tentando entrar e e não conseguia. Quando eu fazia aquelas fotos de fora, com a polícia correndo, botando o povo pra fora... Os militares vinham e tomaram uns filmes meus durante umas três vezes. Me ameaçamvam de prisão, essas coisas. Mas eu tinha que fotografar Miguel Arraes sendo deposto.

Mas ai escureceu... e veio uma caravana de coronel, sargento, turma a paisana... E ai eu estava sentado mesmo na frente deles... Aproveitei para entrar no palácio, lá eu conhecia tudo, o elevador, as escadas...eu fiquei debaixo da escada... Quando eu cheguei lá, já tinha um fotógrafo, Sanderval Loreira, que trabalhava lá no palácio. Ai foi quando eu ouvi o pessoal subindo a escada. Paulo guerra dizendo assim: tem que forçar a barra! Ele tem que renunciar!

Ouvíamos a voz de Arraes falando, aquele rouco bem forte: eu não renuncio não! Vocês podem me botar para fora! Eu fui eleito pelo voto do povo! Quando foi meia noite e pouca, ele saiu preso. Se ele renunciasse, ele saia até solto, mas ele não quis. Consegui fotografar ele num fusca, que saiu correndo. Quando eu vi o wolks, lá atrás, apareceu à cabeça dele... Eu fui fazendo as fotos, mas quando chegou no portão, trocaram ele de carro. Então eu corri para o jornal do commercio, revelei os filmes. Depois fui ao aeroporto por que a manchete estava esperando essa foto, entreguei tudo para um passageiro e o pessoal tava já esperando ele lá. E a foto foi publicada. Foi bem difícil.

Depois disso tudinho, chegaram um sargento, um tenente e um soldado á na ACÊ filmes e tomaram uma parte do meu acervo, né? Uma parte eu já tinha deixado na minha casa na Caxangá, e depois eu doei a Fundação Joaquim Nabuco.

AF – Essa foto de Arraes estava nesse arquivo?

Alcyr Lacerda – A parte do carro tava. Mas a outra parte que foi para a manchete, não.

AF – E Esse material hoje em dia, o senhor sabe onde está ?

Alcyr Lacerda – não... Não sei lhe dizer. Mas nessa época houve outras matérias importantes. Gregório bezerra foi um exemplo disso. Esse foi um dos presos mais valentes que eu já vi na minha vida. Ele dizia assim: "eu tenho vergonha do exercito brasileiro!!! Na cara do general, numa época daquela? Ele estava preso lá no forte das cinco pontas. Eu pensava: o general vai matar esse homem. Ele era corajoso.

AF – Vendo o que se faz hoje, o que o senhor sente falta na cobertura do fotojornalismo?

Alcyr Lacerda – Hoje os fotógrafos tão tudo no mesmo lugar... Antigamente a busca pelo furo era mais intensa. O fotografo precisa também procurar um lugar que deixe ele mais protegido, para pegar alguma coisa que o outro não fez.

AF – E o que é preciso para fazer um bom retrato?

Alcyr Lacerda – Sensibilidade com as coisas. Eu dava um curso de fotografia lá na AC filmes e eu me lembro bem de uma coisa: uma vez nós fomos a Gaibu e o pessoal descia do ônibus já batendo foto de tudo. As vezes eles perdiam detalhes como uma florzinha em uma pedra, ou as pegadas na areia. Depois, meus alunos perguntavam: como é o senhor viu isso? E eu sempre dizia: o fotógrafo tem que aprender a ver.

AF – Quem o senhor considera como influência direta para o seu trabalho? Quem marca a obra de seu Alcyr Lacerda na hora de produzir o seu trabalho?
Alcyr Lacerda – fotografia é oportunidade. Se você fizer uma viagem para algum interior, preocupe-se em saber como o povo vive, como ele planta, como ele se alimenta... Nesses lugares tem tudo para você fotografar, centenas de assuntos. Você tem que pensar em coisa bonita, diferente. As vezes é a mesma foto, mas o ângulo é completamente diferente.

A PROMESSA NÃO CUMPRIDA.

Alcyr Lacerda - Tem uma história curiosa: eu fiz uma promessa e não cumpri. Eu tinha um amigo que morava em Camaragibe e ele pediu para eu fazer uma fotografia do pai dele que morreu. Antigamente tinha esse tipo de foto, a família reunida por trás do caixão. E eu sem prática nenhuma... Fomos eu e um amigo meu. Chegou lá tava todo mundo na sala. Ai eu formei eles lá e mandei eles olharem para a máquina. Quando fui bater, eu notei que tinha um negocio nas minhas pernas. Era o defunto que tinha caído do caixão e tinha vindo pra minhas pernas. Fui uma confusão danada e eu tive que fugir correndo de lá! E eu tinha prometido nesse dia, então, nunca mais fotografar defunto! Agora o mais engraçado é que um dos meus trabalhos, depois, foi fotografar defunto na faculdade de medicina todo dia! Dissecação de cadáver...

AF – Fez de tudo...

Alcyr Lacerda – Em fotografia eu fiz tudo! Menos um trabalho que era vigiar a mulher dos outros. Tinha fotógrafo que fazia, mas eu nunca fiz.

AF – Olhando para o seu material, nós percebemos que o senhor tem uma preferência pelo preto e branco. Porque?

Alcyr Lacerda – Eu comecei com preto e branco. Eu tenho muita saudade do laboratório preto e branco. A gente ficava naquela expectativa pelo negativo, diferente do digital. Hoje o negócio está banalizado.

AF – Mas o senhor tem alguma mágoa da fotografia?

Alcyr Lacerda – Eu devo tudo o que eu tenho a fotografia. Não posso ter mágoas dela. Para não dizer tudo, uma vez eu ganhei no bicho (risos). Tirei no milhar, na cabeça! Deu pra comprar enxoval para os meninos, para trocar o carro!

Eu queria dizer para essa juventude que as coisas têm que ser feitas com carinho. Não como alguns mercenários... Eu mesmo ainda hoje faço casamento de bisneto de casal que há 60 anos eu tinha fotografado. Já passei muita coisa na fotografia. Não posso pedir muita coisa a Deus não, nem ganhar na mega sena (risos)! A fotografia já meu deu tudo!

Confira site feito em homenagem a Alcyr Lacerda. Muito mais material, fotos, depoimentos.

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